Com o objetivo de combater o preconceito, o estigma e promover o conhecimento sobre saúde mental, a Federação Mundial da Saúde Mental (World Federation for Mental Health) criou, em 1992, o Dia Mundial da Saúde Mental, uma data que se assinala anualmente a 10 de outubro.
A saúde mental de todos (?)
É preciso sair da ilha para ver a ilha
José Saramago
Dir-se-ia que a saúde mental é, hoje, um conceito relativamente consensual e bem definido: um estado geral de bem-estar e de gratificação em relação à vida, o qual prevê um balanço positivo entre aspetos dos foros emocional, relacional, ocupacional e físico e a partir do qual o individuo desenvolve as suas competências e consegue lidar com sucesso com as adversidades ocorridas ao longo da vida, encontrando-se, igualmente, preparado para contribuir ativamente para os contextos onde se insere. Este conceito, como transversalmente definido, não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade, colocando a enfase no conceito de bem-estar. Ainda assim, o termo ‘bem-estar’, presente nesta definição postulada pela Organização Mundial de Saúde, parece ser tanto um componente do conceito de saúde física como de saúde mental (pois se não há saúde física sem saúde mental e o contrário poderia também ser dito), todavia entendido como um constructo de natureza subjetiva e fortemente influenciado pela cultura de pertença.
A importância da saúde mental está absolutamente estabelecida – sabemos o quanto a sua ausência impacta a vida de uma pessoa, na sua integralidade (na capacidade de sentir prazer pela vida, na habilidade para criar e produzir, na possibilidade de desempenhar tarefas mais ou menos estruturadas, mas nas quais se destacam as de autocuidado, as académicas, as profissionais, as de lazer e as familiares), sabemos já, igualmente, os custos de uma saúde mental em sofrimento do ponto de vista individual e social (custos como ausências ao trabalho, presentismo e perda de produtividade, terapêuticas farmacológicas, entre outros) e sabemos também quais os fatores de risco e aqueles que podem ser promotores de uma vida – emocional – mais satisfatória e equilibrada (ambientais, orgânicos, económicos, sociais e relacionais, relacionados com estilos de vida e com a formação e literacia, etc). Todavia, estarão suficientemente bem estudados e serão efetivamente compreendidos outros fatores que se diria poderem ter uma relação estreita com o conceito de saúde mental? Sendo tão variável o conceito de bem-estar, será a expressão da saúde mental algo absolutamente transversal em diferentes culturas? E terá o género um papel e um impacto no que se configura como saúde mental? A investigação dá-nos algumas destas respostas.
Do ponto de vista cultural, os construtos criados em torno do que configura um estado de saúde ou de doença mental não parecem de todo os mesmos e tão pouco o acesso aos serviços de saúde mental são iguais ao longo do globo – os dados indicam que a Argentina é o país do mundo com mais Psicólogos por habitante, seguido da Costa Rica, da Holanda, da Finlândia e da Austrália. Em Portugal a realidade é bem diferente: o país tem apenas 3,16 psicólogos por cada 100 mil habitantes, cerca de 1.000 de um total de 26.000 inscritos na Ordem dos Psicólogos Portugueses estão presentes no Serviço Nacional de Saúde, apresenta um rácio de um psicólogo para 744 alunos, e no caso dos estabelecimentos prisionais há 30 psicólogos (muitos a meio tempo ou menos) nos 49 estabelecimentos, para cerca de 14 000 reclusos.
Por outro lado, e já excluindo diferenças cultuais, será que homens e mulheres estão sensíveis de igual forma para o bem-estar psicológico e para o sofrimento emocional? E será que a expressão da saúde e da doença mental varia segundo o género? Pensando no caso da infância, as casuísticas dos serviços de saúde indicam que as crianças do sexo masculino exibem mais alterações de tipo externalizante e as crianças do sexo feminino revelam mais indicadores na linha da internalização, o que se verifica igualmente na adolescência. Podemos, então, pensar no impacto que tem este aspeto estatisticamente tão evidente na expressão comportamental e emocional na adultícia, mantendo-se um perfil diferente, mas uma resposta semelhante dos serviços.
Se por um lado, na denominada cultura ocidental, os homens ainda apresentam uma enorme relutância em falar do que sentem – quando o que sentem é altamente desvalorizado – e em exprimir o estado em que se encontram (particularmente nos domínios mais ligados às perturbações do humor e da ansiedade), por outro, o mesmo parece acontecer com as mulheres já que se lhes atribui uma expressão emocional mais exacerbada, uma perspetiva invalidante da extensão, profundidade e veracidade do seu sofrimento. Tomem-se como exemplo os estudos que chamam à atenção para a desigualdade percebida aquando de uma ida às urgências médicas – as queixas realizadas por homens são mais valorizadas por técnicos de saúde, tanto homens como mulheres. O peso efetivo deste enviesamento é tão impactante que leva muitas vezes à não procura de ajuda e à não realização de diagnósticos clínicos, mas também à elaboração de classificações diagnósticas que não tomam em consideração uma parte substancial da população: as mulheres. Mas a mesma preocupação pode ser referida no que concerne ao sexo masculino – quantos homens se vêm inibidos de procurar ajuda para situações de sofrimento mental, mas também de denunciar situações nas quais são vítimas de diversas formas de violência no contexto de uma relação, quer a técnicos homens quer a técnicos mulheres, por vergonha, receio da reação e um sentir geral de incompreensão e ridicularização.
Não estarão todos reféns deste enquadramento, quando, culturalmente, a expressão de conteúdos emocionais é tão negativamente conotada, quando crianças, homens e mulheres sofrem em segredo, carregando o peso interno e externo de algum tipo de sofrimento emocional num sistema que cala a vida emocional e incentiva o estoicismo e uma cultura de positivismo? Numa cultura na qual não existe um diálogo emocional todos, independentemente da idade, do género e de outras condições, estão a ver os seus sentires e os seus estados psicológicos fortemente desvalorizados e menosprezados, não recebendo o entendimento e o cuidado que lhes é devido.
Por isso diríamos, neste dia mundial da saúde mental, e sempre:
- é urgente criar contextos nos quais os diálogos emocionais sejam possíveis,
- é urgente que o vocabulário emocional entre e esteja presente nas conversações quotidianas,
- é urgente uma cultura que esteja sensível para o autocuidado, que diminua o estigma e a inibição na procura de um profissional de saúde,
- é urgente que possamos trazer para perto, democratizar, diríamos, tornar acessíveis, os serviços de saúde mental – é robusta a evidência que indica que quando há oferta, há procura, isto é quanto os serviços de saúde mental (Psicologia e Psiquiatria) estão mais próximos da população, esta procura e usufrui,
- é urgente tornar as especialidades de saúde mental um serviço natural num portefólio de serviços de saúde – se concebemos uma ida ao pediatra como absolutamente impreterível, porque não pensar o mesmo em relação a um especialista em saúde mental?
- é urgente promover desde a primeira infância serviços e atividades dirigidas para a estimulação de competências emocionais quando é reconhecido que a prevenção é um dos maiores preditores de sucesso em termos do funcionamento emocional
e que as intervenções precoces estão correlacionadas com maior eficácia em termos de resultados – considera-se que existe um importante grau de continuidade entre muitas perturbações na infância e as da idade adulta, sendo que cerca de 50% das doenças mentais que se manifestam ao longo da vida têm o seu início na adolescência e 70% delas antes dos 24 anos de idade, pelo que, aumentar os fatores protetores na infância e na adolescência, promove e previne a ocorrência de doença mental no adulto, - é urgente mitigar as desigualdades, sociais e de género, não só no acesso a serviços, como também na compreensão sobre saúde mental, com profissionais mais sensíveis para estas questões.
Uma cultura de saúde mental é uma cultura onde se fala de sentimentos, de sentires e de adversidades, e na qual se aceita internamente que estes podem ser verbalizados de forma segura, independentemente do género e de outras condições.
Que o dia da saúde mental possa ser sempre mais do que uma pedra num lago imenso e sim um alerta definitivo, constante e prolongado por todos os outros dias para que possamos olhar – para dentro e fora de nós – com uma consciência acrescida do sentir e do ser.

Ana Veríssimo
Psicóloga Clínica – CAI MUSSOC – Lisboa