“Que o ontem me sirva de experiência e o amanhã me sirva de esperança”
Sei que era uma adolescente (a idade não me recordo) quando a minha 1ª experiência de morte marcou definitivamente o rumo da minha vida.
Até esse momento fui uma criança feliz. Não vivia com luxo, sabia dos sacrifícios que os meus pais faziam para me criarem, a mim e à minha irmã (gémea), mas o fundamental era o sentimento de segurança e bem-estar que sentia, o sentimento de amor e de pertença que a minha família sempre me transmitiu.
Tudo isto foi abalado com a morte do meu avô paterno, pilar fundamental da nossa família. Nessa altura, dei-me conta, pela 1ª vez, da fragilidade humana e do sofrimento que isso acarreta.
Na véspera de ele morrer fui vê-lo ao hospital… e ainda recordo esse dia como se fosse hoje: após o 3º AVC encontrava-se acamado e embora consciente, não lhe era possível verbalizar. Ele quis falar comigo… eu aproximei-me do seu corpo, já débil… ele tentou balbuciar algo que eu não consegui entender… e sem pensar nas consequências do meu ato, fugi para fora do seu quarto, em choro compulsivo, sem conseguir despedir-me… No dia seguinte, soube que ele tinha falecido. Esta dor acompanhou-me durante bastante tempo… Não pude, nem consegui despedir-me e dizer-lhe o quanto o amava e o quanto a sua presença era importante para todos.
Só passados 10 anos de ter terminado o Curso de Enfermagem e após vários momentos de reflexão introspetiva, percebi que a escolha da minha carreira profissional (trabalhar em lar de idosos e cuidados continuados) se devia à necessidade que eu sentia de estar próximo daqueles que estão em fim de vida. Saber lidar com as doenças crónicas da 3ª idade e poder fazer pelos outros aquilo que não tinha conseguido fazer com o meu avô: comunicar e saber estar com alguém em situação de grande fragilidade física e psicológica e aceitar a finitude da vida. Encarar a própria vida como algo de belo e que pode ser vivido com muita tranquilidade, inclusive, no momento de partirmos. Como profissionais de saúde e trabalhando com doentes em fim de vida, cabe-nos a responsabilidade de sermos os veículos desses momentos de serenidade…
Ser enfermeiro/a é muito mais do que ter uma licenciatura na área da saúde, é conseguir escolher a palavra certa, no momento certo, para quem a precisa ouvir, é estar disponível, ser empático, nutrir compaixão pelo próximo e transmitir tranquilidade e esperança. É trabalhar em equipa, gerir equipas e saber ainda responder, de forma assertiva e competente, aos desafios diários que enfrentamos. Mas ser enfermeiro também é trabalhar com sentido de missão, em prol de quem cuidamos, com o sentimento de que fazemos todos os dias o melhor que sabemos e podemos, abdicando, na maior parte das vezes, do tempo que poderíamos dedicar à família, dos aniversários e Natais que deixamos de festejar para estar a trabalhar. É curar feridas quando as nossas ainda “sangram”, é deixar uma palavra de coragem mesmo quando já sentimos não ter forças para “lutar” …
Sem dúvida que a nossa experiência de vida molda a nossa personalidade, assim como a forma como lidamos com os problemas do dia a dia, pois quase todos os dias somos confrontados com o sofrimento alheio, mas não somos, nem nunca seremos, imunes ao sofrimento das pessoas e lamento só sermos lembrados e valorizados quando precisam de nós…
Mas o que também importa dizer, a todos os que nos rodeiam, é que não se esqueçam que, afinal de contas, também somos pessoas, com todas as virtudes e defeitos que isso implica. Pessoas que cuidam de pessoas, nas mais diversas situações da vida. Não só estamos presentes no nascimento, para ajudar a trazer vida ao mundo, como estamos presentes ao longo de todo o percurso de vida do ser humano, assim como no último fôlego de vida dos que partem e ainda para apoiar os familiares durante o período de luto.
Como se não bastassem todos estes desafios diários, a pandemia que assola o mundo inteiro veio, uma vez mais, por à prova a resiliência e a resistência física e psicológica desta classe, com todas as consequências nefastas para a nossa saúde física e mental, quer seja a curto ou a médio prazo. Mas, de forma espontânea e colocando a família, mais uma vez, em segundo plano, “demos o corpo às balas”, mesmo quando ainda havia tão pouca informação ou quando a que existia era confusa e contraditória, o que, por vezes, ainda hoje se verifica… levando a que fossemos forçados a mudar as nossas rotinas de trabalho, a reestruturar serviços, a ter que tomar decisões importantes em momentos críticos e de elevado stress, sempre em prol daqueles que estão ao nosso cuidado e que temos o dever de proteger e, ainda, a lidar com sentimentos de medo, anseios, cansaço e exaustão de toda uma equipa de profissionais, utentes e seus familiares.
Enfrentar e ultrapassar todos estes desafios supera tudo e dá-nos ânimo e forças para continuar, todos os dias, a lutar pela dignificação da enfermagem, da vida humana e pela melhoria da qualidade de vida de todos aqueles que dependem de nós!
Como enfermeira, este último ano tem sido um desafio diário e constante, mas não posso deixar de me sentir grata e orgulhosa pelo sentimento de união e companheirismo vivido com todos aqueles que trabalham na União Mutualista do Montijo, desde o Presidente do Conselho de Administração a todos os colaboradores desta centenária instituição. A entrega incondicional de todos por um bem comum, a dedicação de todos em prol da segurança e bem-estar dos nossos utentes! A demonstração de humildade e tolerância, tão necessárias em qualquer trabalho de equipa, fazendo com que a motivação e o comprometimento uns com os outros superasse o sentimento de impotência e frustração.
O meu obrigado a todos por estarem connosco nesta batalha diária que travamos, sem o vosso empenho não seria possível a resposta que temos conseguido, mas esperando também que estas palavras nos motivem a todos para continuar, com força renovada, a combater o inimigo invisível que nos tem assolado.